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“Eles não ligam pra gente”, Manoel Afonso

Sem enfermeiros, caixas, policiais, motoristas de ônibus, profissionais de limpeza e outros trabalhadores que a crise do coronavírus mostrou serem essenciais, nenhum país anda. É hora de reconhecer o seu valor

Profissionais de limpeza pública trabalham nas ruas do Rio de Janeiro

Profissionais de limpeza pública trabalham nas ruas do Rio de Janeiro

Caros brasileiros,

Nestes tempos de coronavírus parece que tudo mundo está fazendo home office. Parece. Pois, na realidade, o home office aqui, na Alemanha, ganhou uma nova conotação. Se antes era visto como um instrumento para conciliar trabalho e família, hoje é considerado um refúgio dos privilegiados.

“Esses privilegiados à noite saem nas varandas para aplaudir a nova elite do país”, escreveu o jornal semanal Die Zeit. A “nova elite” a que o jornal se refere são profissionais que, há até bem pouco tempo, eram pouco valorizados: o auxiliar de enfermagem que trabalha sem material de proteção. O agente funerário, que se depara com um luto nacional. Os profissionais de limpeza que desinfetam ruas e hospitais.

São os caminhoneiros, que garantem o abastecimento nos supermercados. Os caixas, que atendem os clientes sob o risco de serem contaminados. O trabalhador rural, que planta e colhe. O entregador de comida, o condutor de ônibus, o policial, os cuidadores, educadores, professores e, sobretudo, os profissionais da saúde.

Na Alemanha, todos esses profissionais são agora “essenciais”. A epidemia mostrou que são eles que põem o país para funcionar. Será que, desta vez, com toda essa valorização, o salário desses profissionais “essenciais” finalmente vai aumentar?

Michael Jackson They don't care about us

Michael vestiu a camisa do Olodum na favela Dona Marta

Esse debate me lembra de uma música famosa do Michael Jackson: They don’t care about us  (Eles não ligam pra gente), sobre a discriminação da população pobre no mundo inteiro. O vídeo da música foi produzido em fevereiro de 1996 no Brasil. Uma parte foi filmada no Pelourinho, em Salvador, com o apoio do grupo Olodum. A outra parte foi gravada na favela Dona Marta, no Rio de Janeiro.

Nesse vídeo, os percussionistas do Olodum deram um show de ritmo, suingue, ginga e orgulho negro. Michael Jackson, pálido e magro, cantou e dançou no meio deles, e ficou bem claro: sem a participação brasileira, a música de Michael Jackson não anda, o clipe não tem força nem animação.

Me lembrei desse videoclipe, dirigido pelo famoso Spike Lee, agora no meio da crise do coronavírus. Michael Jackson quis valorizar a cultura negra no Brasil, quis mandar um sinal contra a discriminação e a pobreza. Ele saiu dando beijinhos nos becos da Dona Marta e no Pelourinho. Ele declarou seu amor pelo Brasil. Ele vestiu a camisa do Olodum e dançou no telhado dos barracos.

Depois de ter gravado cenas coloridas e impactantes, Michael viu as vendas do single dispararem. Na Europa, They don’t care about us conquistou os primeiros lugares nos charts e recebeu disco de ouro. A fama de Michael Jackson cresceu, mas a pobreza na Dona Marta e nas ruas de Salvador da Bahia continuou.

O coronavírus deixou essas profundas rachaduras sociais novamente evidentes. A “nova elite” pode até ganhar palavras de elogio, mas continua ganhando uma miséria. Continua morando em favelas dominadas pelo tráfico, continua sem plano de saúde, sem previdência ou proteção trabalhista.

Corona tem classe, quarentena tem classe, na Alemanha como no Brasil. E músicos, políticos e pastores que criticam essa injustiça social e ao mesmo tempo tentam se promover em cima disso, infelizmente não contribuem para mudar esse quadro. É o sucesso da hipocrisia: criticar “a velha elite” e ao mesmo tempo pertencer à ela e defender os seus interesses.

They don’t care about us? They should care about us. The will care about us. Em vez de esperar um reconhecimento que nunca vem, é melhor que a “nova elite” brigue e conquiste seus direitos, que são mais do que merecidos.

O coronavírus ainda pode levar a mudanças imprevisíveis.

Astrid Prange de Oliveira foi para o Rio de Janeiro solteira. De lá, escreveu por oito anos para o diário taz de Berlim e outros jornais e rádios. Voltou à Alemanha com uma família carioca e, por isso, considera o Rio sua segunda casa. Hoje ela escreve sobre o Brasil e a América Latina para a Deutsche Welle. Siga a jornalista no Twitter @aposylt e no astridprange.de.

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